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Freqüentemente encontramos por aí citações de importantes pensadores, citações polêmicas que fora de contexto podem tomar um significado totalmente deturpado. É um caso freqüente o filósofo genealogista Friedrich Nietzsche com sua vasta é difícil obra que exige muito mais do que uma simples leitura, mas como o próprio dizia é preciso aprender a arte de ruminar seus escritos para entende-los. Assim como ele, é todo filósofo, uso de linguagem técnica, na forma culta, metáforas e no caso do Nietzsche até a forma poética.
A mulher foi o segundo erro de Deus. (Nietzsche)
A princípio parece uma preconceituosa frase sem sentido e sem fundamento, assim como a célebre "Deus está morto" (Vide O Impacto de Nietzsche no século XX e Nietzsche e Nazismo), que assim como a primeira é mal interpretada na maioria das vezes. Para se entender é preciso analisá-la em seu contexto que segue abaixo. É preciso tomar cuidado antes de citar qualquer pensador para não se comenter o equívoco de mal entende-lo, quando muitas vezes, esses velhos pensadores, querem dizer no contexto exatamente o contrário do que a frase isolada diz.
XLVIII
O velho Deus, todo “espírito”, todo grão−padre, todo perfeição, passeia pelo seu jardim: está entediado e tentando matar tempo. Contra o enfado até os Deuses lutam em vão(1). O que ele faz? Cria o homem – o homem é divertido... Mas então percebe que o homem também está entediado. A piedade de Deus para a única forma da aflição presente em todos os paraísos desconhece limites: então em seguida criou outros animais. Primeiro erro de Deus: para o homem esses animais não representavam diversão – ele buscava dominá−los; não queria ser um “animal”. – Então Deus criou a mulher. Com isso erradicou enfado – e muitas outras coisas também! A mulher foi o segundo erro de Deus. (o grifo é meu) – “A mulher, por natureza, é uma serpente: Eva” – todo padre sabe disso; “da mulher vem todo o mal do mundo” – todo padre sabe disso também. Logo, igualmente cabe a ela a culpa pela ciência... Foi devido à mulher que o homem provou da árvore do conhecimento. – Que sucedeu? O velho Deus foi acometido por um pavor mortal. O próprio homem havia sido seu maior erro; criou para si um rival; a ciência torna os homens divinos – tudo se arruína para padres e deuses quando o homem torna−se científico! – Moral: a ciência é proibida per se; somente ela é proibida. A ciência é o primeiro dos pecados, o germe de todos os pecados, o pecado original. Toda a moral é apenas isto: “Tu não conhecerás” – o resto deduz−se disso. – O pavor de Deus, entretanto, não o impediu de ser astuto. Como se proteger contra a ciência? Por longo tempo esse foi o problema capital. Resposta: expulsando o homem do paraíso! A felicidade e a ociosidade evocam o pensar – e todos pensamentos são maus pensamentos! – O homem não deve pensar. – Então o “padre” inventa a angústia, a morte, os perigos mortais do parto, toda a espécie de misérias, a decrepitude e, acima de tudo, a enfermidade – nada senão armas para alimentar a guerra contra a ciência! Os problemas não permitem que o homem pense... Apesar disso – que terrível! – o edifício do conhecimento começa a elevar−se, invadindo os céus, obscurecendo os Deuses – que fazer? – O velho Deus inventa a guerra; separa os povos; faz com que se destruam uns aos outros (– os padres sempre necessitaram de guerras...). Guerra – entre outras coisas, um grande estorvo à ciência! – Inacreditável! O conhecimento, a emancipação do domínio sacerdotal prosperam apesar da guerra! – Então o velho Deus chega à sua resolução final: “O homem tornou−se científico – não existe outra solução: ele precisa ser afogado”...
1 – Paráfrase de Schiller, “Contra a estupidez até os Deuses lutam em vão”. (H. L. Mencken)
(Friedrich Nietzsche, O Anticristo, XLVIII)